Hoje é:24 de novembro de 2024

Contrariar verdades não é liberdade de expressão, mesmo no seu celular

Não é porque o WhatsApp leva seu nome, foto e citação bíblica aliado ao número de telefone que você não tem responsabilidade sobre o que fala, repassa ou endossa

Por Ed Wanderley

O conteúdo deste artigo não necessariamente reflete a opinião da Anicer e é de responsabilidade de seu autor.

O amigo do primo do meu porteiro vende uma solução em construção, produzida na China, feita de papel que é 10 vezes mais barata que os tijolos comuns, resiste a incêndios, promove conforto térmico e, de encaixe, nem precisa de cimento – ideal para uma nova geração hipster do “faça você mesmo” e um protesto direto à indústria capitalista da construção civil. Repasse essa mensagem para 10 pessoas e ganhe 10% de desconto se comprar hoje.

Dói, né? Para quem lida com a área, não é preciso 20 segundos de leitura para identificar que a informação é falsa e potencialmente prejudicial a toda uma categoria séria de profissionais. E se, para você, não há qualquer incômodo porque ninguém acreditaria em tamanha loucura, lembre-se que estamos em 2020 e ainda tem gente que diz que a Terra é plana. Não me surpreenderia se, em uma semana, um de seus funcionários fosse abordado por potenciais clientes com um “e a história do tijolo de papel, da China, já viram?”.

É nesse contexto em que o jornalismo se entricheira hoje em dia. Usa um termo cafona, americanizado de “fake news”, mas no meu Nordeste diríamos “é mentira, lorota”, que o sujeito “tá conversando água” ou “é pinóquio”. Fomos ensinados desde cedo que mentir é feio, mas assistimos, incrédulos, como esse virou um recurso diário de negócios, política e desinformação que vai da piada inofensiva a situação que colocam em risco a saúde e a vida de parte da população – sim, boatos já geraram linchamentos em várias partes do País, basta uma busca rápida.

Talvez seja esse o momento da história recente em que a discussão seja mais necessária e menos ouvida. Nos últimos anos, nunca se buscou tanto fontes com credibilidade quanto durante a crise do novo coronavírus (Sars-cov2); e, ao mesmo tempo, nunca se disseminou tanta mentira sobre o mesmo episódio – ou vocês não viram o vídeo de quem dizia que, contra a Covid-19, o negócio era tomar água tônica, rica em quinina, princípio básico da cloroquina e que “isso a Globo não mostra”?

Um “será verdade?” não te exime do papel de propagador. Não existe notícia falsa; se é fake não é news, por definição.

Atualmente, está em curso uma “CPI das fake news” e há um tanto mais de leis que buscam responsabilizar quem encaminha conteúdos falsos em massa. Convenhamos, tudo perfumaria e as tais leis são tão eficientes quanto aquela que manda olhar se o elevador está no seu andar antes de entrar – coisa de gênio que, na prática, não há prática. A oportunidade talvez seja o de repensar seu hábito.

Um “será verdade?” não te exime do papel de propagador. Não existe notícia falsa; se é fake não é news, por definição. Estudos, declarações, dados, casos mirabolantes, sendo verdadeiros, serão publicados à exaustão, não tenha dúvidas – até porque, se há interesse, geram audiência. Não é o seu grupo de WhatsApp super informado com fontes top secretas exclusivas que saberá o que ninguém mais conhece – e você até sabe disso. Soluções para problemas como a Covid-19? Basta fazer um exercício: as mais brilhantes mentes do mundo estão correndo contra o tempo para achar uma resposta definitiva sobre o assunto há cinco meses; será mesmo que é Guilherme da Quebrada, que você não sabe quem é, a pessoa que terá as respostas buscadas pelo mundo inteiro? Se você não tem essa resposta com certeza e rapidez, entra em contato comigo, tenho uns esquemas de pirâmide pra te vender (digo, fazer ficar rico)…

Instagram: @edwanderley

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Ed Wanderley é repórter e escritor, natural de Pernambuco, destacado entre os 100 jornalistas mais premiados do Brasil. Torcedor do Sport e entusiasta da lógica de que quando a informação não é o bastante, só o humor salva.

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