Hoje é:23 de novembro de 2024

O uso inovador de um material milenar

Arquiteto africano Diébédo Francis Kéré utiliza a argila de forma surpreendente em seus projetos e fatura o prêmio Pritzker 2022

Por Carlos Cruz

Mais que apresentar um caráter estético ou funcional, a arquitetura pode ser utilizada para agregar valor social. Vencedor do prêmio Pritzker 2022, o arquiteto africano Diébédo Francis Kéré entende muito bem disso e tem explorado da melhor forma essa característica da profissão. Nascido na cidade de Gando, em Burkina Faso, Kéré ficou conhecido principalmente pelo viés social de seus projetos e pela forma em que usa o seu trabalho para a transformação da realidade.

A proposta de suas obras não é por acaso ou de forma aleatória, mas um reflexo de sua origem e o resultado de seu desejo de ajudar a comunidade onde nasceu. Sua cidade natal é uma pequena vila, com cerca de 3 mil habitantes, marcada pela pobreza, problemas com tratamento de água e educação precária. Foi lá que o arquiteto viveu até os 7 anos, quando precisou deixar o vilarejo para estudar em outra cidade, Tenkodogo, já que em Gando não tinha escola. Anos mais tarde, em 1985, kéré conseguiu uma bolsa de estudos em uma universidade alemã e começou a estudar carpintaria. Dez anos depois, em 1995, ingressou na faculdade de arquitetura, novamente como bolsista, até que se formou em 2004. No ano seguinte, o arquiteto fundou sua própria empresa, a Kéré Architecture, com sede em Berlim.

Mas a vontade de ajudar a comunidade e de usar suas habilidades em prol do coletivo não puderam esperar, e antes mesmo de se formar, Kéré buscou formas de impactar positivamente a vida dos moradores da cidade de Gando. Em 1998, o então carpinteiro fundou a associação Schulbausteine ​​für Gando, quando conseguiu arrecadar fundos e construir a primeira escola primária da região. O projeto rendeu ao arquiteto o prêmio internacional Aga Khan de Arquitetura.

Uma das características mais marcantes do trabalho de Kéré é o uso inovador de técnicas e materiais simples. É comum perceber em suas obras a utilização da argila, de tijolos ou técnicas tradicionais com o barro, sempre a partir de métodos ousados e admiráveis que agregam à construção um valor único. Seu objetivo não é projetar obras fora da realidade das localidades em que atua, mas adaptar o trabalho para a especificidade de cada comunidade, atentando às necessidades e condições econômicas e climáticas. O resultado desse olhar sensível e simples é tão surpreendente que, não à toa, neste ano, Kéré se tornou o primeiro arquiteto negro a ganhar o Pritzker, considerado o Nobel da Arquitetura.

Separamos os detalhes de 4 projetos do arquiteto que exploram a argila.

Escola Primária de Gando – Gando, Burkina Faso

A primeira escola primária da cidade foi uma verdadeira surpresa para os moradores, não só porque não existia, na região, outra instituição com a mesma finalidade, mas também pela forma com que foi desenvolvida. Em uma conferência do ‘Ted: Ideas Worth Spreading’, Kéré contou que, quando disse aos habitantes que a escola seria feita em argila, todos ficaram chocados e até desacreditados, já que não enxergavam nenhuma inovação no uso do material. “Então, eu precisei convencer todo mundo. Eu comecei a falar com a comunidade, consegui convencê-los e pudemos começar o trabalho. E as mulheres, os homens, todos da vila fizeram parte do processo de construção. Eu pude, inclusive, usar técnicas tradicionais. Chão de barro, por exemplo. Os rapazes vêm e ficam assim, batendo, por horas e horas, e então as mães vêm, e ficam batendo por horas, jogando água e batendo. E então, os polidores vêm. Eles começam a polir com uma pedra por horas”, explica.

O edifício foi construído de forma conjunta com a comunidade e a argila local foi o principal material utilizado nas paredes. Já o telhado é de zinco, com uma técnica que protege o ambiente de altas temperaturas. “Nessa escola, havia uma ideia simples: criar conforto numa sala de aula. Não se esqueça, pode-se chegar a 45°C em Burkina Faso. Então, com ventilação simples, eu queria fazer a sala de aula boa para o ensino e a aprendizagem”, afirmou Kéré durante a palestra. A obra revela o potencial da argila quando usada de forma criativa. Fundada em 2001, a escola permanece atendendo aos alunos da região até hoje.

Teto da biblioteca de uma escola em Gando – Gando, Burkina Faso

O êxito da escola atraiu estudantes de aldeias vizinhas e, para apoiar os estudos desses alunos, foi construída uma extensão da escola primária, a biblioteca da escola. A argila novamente aparece sendo usada no teto, parte principal do edifício. Mais uma vez, o telhado não é feito com materiais ou técnicas complexas. Pelo contrário, Kéré utiliza produtos convencionais da região, mas de uma forma inovadora: as panelas de barro, produzidas artesanalmente pelas mulheres da aldeia. “Algo que temos em Gando são panelas de barro. Nós queríamos usá-las para criar aberturas. Então, nós apenas trouxemos elas para o lugar da construção. Começamos a cortá-las e então as colocamos no topo do telhado antes de colocarmos o concreto, e é esse o resultado. As aberturas deixam o ar quente sair e a luz entrar. Muito simples”, explica.

Centro de saúde e cirurgia – Leo, Burkina Faso

A transformação social tão buscada por Kéré não se dá apenas no âmbito educacional, mas de todas as esferas que afetam a sociedade, como a área da saúde. O Centro de Cirurgia e Saúde da cidade de Leo, em Burkina Faso, é um exemplo disso. A estrutura do edifício rompe com os padrões tradicionais dos prédios hospitalares ao trazer o centro médico disposto em vários módulos ao longo de uma rua, gerando uma sensação de conforto e familiaridade, como em um vilarejo. A argila é mais uma vez a aliada do arquiteto na construção. O material aparece em forma de tijolo de terra compactada nas paredes e, por conta das propriedades deste produto, a temperatura interna permanece estabilizada. Além disso, grandes telhados protegem o edifício em tempos chuvosos ou em dias de sol, e um sistema de coleta faz o reaproveitamento da água da chuva e a usa na irrigação das árvores ao redor.

Centro de Arquitetura da Terra – Mopti, Mali

Projetado pela Kéré Architecture no Mali, o Centro de Arquitetura da Terra encontra-se localizado em um aterro às margens de um lago, na cidade de Mopti, e os blocos de terra compõem o edifício. Além de ser um espaço cultural público, no centro também são executadas as funções administrativas do distrito. Sua estrutura em barro se adequa às características da região, já que os blocos de terra compactada, que aparecem nas paredes e teto do centro, são considerados ideais, dada as condições climáticas do país. As propriedades térmicas desse material também permitem que a temperatura do local fique regulada e o ambiente interior mais agradável. Com o telhado suspenso, as paredes são protegidas dos tempos chuvosos ou da radiação solar, além de ficarem mais frescas. O Centro também conta com uma ventilação natural, que acontece devido a aberturas das paredes e abóbadas e com isso, também é reduzido o consumo de energia.

Carlos Cruz é jornalista na Anicer.

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